terça-feira, 10 de janeiro de 2017

Sob a Lua de Ragnar | Cidade de Heróis | Parte 3

VOLUME I - SOB A LUA DE RAGNAR

Capítulo 1: Cidade de Heróis




Elfos eram, até poucos anos atrás, grandes entusiastas das artes, referência, suas cidades eram as mais belas, seus poetas os mais eloquentes, a música era sempre mágica, com tons arcanos e divinos. Lennorien fora o ápice da cultura élfica, mesmo membros da raça se admirava com suas belezas, sempre que a avistavam. Hoje não há muitos homens ou mulheres que tragam na lembrança as imagens, sons e cheiros daquela maravilha dentre as maravilhas produzidas pelos filhos de Glórienn. Erudhir Stalkingwolf era um deles. Após a queda da nação élfica ele rejeitou a deusa de seu povo e passou a adorar Allihanna, uma mãe calorosa, forte e presente. A deusa da natureza retribuiu o amor do elfo e lhe garantiu poderes, a habilidade de curar o mundo, interagir com a vida ao seu redor, de aquecer o próprio coração e seguir vivendo, deixando para trás tudo o que não mais vivia e que lhe causava um sentimento novo, ao menos para um elfo: saudade. Os elfos sempre lidaram de forma racional e equilibrada com a perda, entendiam que a morte vinha quando cessava a beleza da existência, desta existência. Seus amados embelezariam o mundo de Glórienn, a mãe de todos. Erudhir já não pensava assim. Então, a saudade.
Agora, todavia, o clérigo de Allihanna batia palmas e no ritmo da melodia de um bardo, festejando os resultados financeiros dos jogos dos quais ele e Tomoe participaram. Nenhum dos dois ganhou nada. Lili ganhou. Lucro suficiente para pagar a taverna, o pouso para a noite, a comida, estava ótimo. Tomoe parecia aliviado pela primeira vez desde a chegada a Malpetrim, fácil perceber que não estava acostumado a viver com pouco ou nenhum dinheiro, ao lado do elfo batia com a palma da mão direita na própria coxa, acompanhando o bardo, sorriso no rosto limpo e marcado pelo sol da viagem. No meio da turba embebida em cerveja barata e vinho de procedência duvidosa, Lili. A halfling aproveitava para aumentar o lucro do dia, aliviando descuidados do peso do ouro e da prata. Na mesma posição durante a última hora e meia, sentado em uma mesa isolada próxima da entrada, olhos atentos ao crime, olhos enganados por Lili e ao menos outros três ladinos que trabalhavam ali naquela noite, Eld observava o ambiente. Bain, em uma cadeira no andar superior observava com curiosidade, bebendo chá, sendo alvo de chacotas de jovens incautos e pouco inteligentes. O feiticeiro levantou e seguiu para o quarto, onde pretendia terminar a leitura. A ida ao quarto foi, entretanto, interrompida pela visão de duas pessoas abordando o samurai. Um homem de meia idade, cabelos castanhos circundando uma lustrosa careca no alto da cabeça e bigode vasto, barriga proeminente, costeletas até onde se poderia ir uma costeleta, camisa de algodão de qualidade, bem cuidada, mas gasta, calças de couro mais apertadas do que a prudência sugeriria, botas de viagem. Ao seu lado uma criança de aproximadamente dez anos, pele queimada do sol, magricela, cabelos castanhos claros emaranhados e sujos, nariz arredondado, sujo e ranhento, uma criança feliz, normal e carregando uma espada de madeira. Bain desceu até onde estavam o tamuriano e o clérigo, queria ouvir.
-Boa noite, amigo, meu nome é Miguel, este é meu filho, Pedro. Gostaríamos de conversar sobre negócios com os senhores, é uma boa hora? – indagou o homem, a criança ficando quieta de forma absolutamente normal e suspeita, como toda criança.
Tomoe olhava os homens, fazia força para lágrimas de alegria não verterem e rolarem rosto abaixo.
-Oh, boa noite! Boa noite, nobre senhor! Não há qualquer impedimento, por favor, senta-te à mesa conosco! – conseguiu dizer Tomoe, levantando e apontando uma cadeira vaga ao homem.
Atento, Eld levantou e caminhou até a mesa onde a conversa se iniciava. Chegou junto com Bain, que puxava uma cadeira. O feiticeiro, ao ver o paladino, o cumprimentou. Eld agradeceu e sentou-se. Bain olhou para ele, incrédulo. Puxou outra cadeira.
-Vejo que todos estão aqui, que bom – disse o senhor.
-Agora estamos – uma voz soou ao lado do homem.
Miguel olhou para o lado e viu uma halfling usando botas de couro, longos cabelos negros e uma generosa bolsa que parecia conter dinheiro.
-Estamos todos aqui agora, senhor, qual o assunto? – perguntou Erudhir, curioso com o surgimento dos companheiros.
-Sim, sim, então estavam todos juntos nos jogos, são uma equipe? Não havia notado alguns de vocês, que bom, que bom, são mais completos do que imaginei – Miguel olhava para a halfling enquanto falava, ainda intrigado com seu papel no grupo – Bom, o assunto que me traz aqui diz respeito a todos vocês. Gostaria de contratar o grupo para uma escolta.
-Quais os termos da pro... – começou Lili.
-SIM – encerrou Tomoe.
-Perdão? – pai e filho, um pouco assustados pelo grito repentino, observavam, olhos arregalados, o samurai.
-Perdão. Sim, aceitamos a honra de proteger vosso grupo até o local a ser combinado – Tomoe sentenciou.
-Tomoe, veja bem – começou, novamente, Lili.
-Já está decido.
-Como é que... – Lili tentou outra vez.
-Quando começamos? - Tomoe perguntou para Miguel.
-UHHHH, OMI!!! - explodiu Lili - Cê tá é louco de falar assim comigo! Me interrompe outra vez pra ver se não arranco essa tua cabeça! Cala essa boca, deixa de omice e ouve a especialista em contratos!
-Lili! - interviu Bain.
-Quié, hein? - retrucou Lili, o feiticeiro só observava.
-Mandaste-me cala... - começou Tomoe.
-XIU, OMI! Não me faz pegar a adaga!
Miguel e o menino olhavam, um tanto assustados, a pequena mulher silenciar o samurai, que ainda protestava, mas parecia um pouco aturdido e confuso, talvez até intimidado.
-Senhor, Miguel – sorriu Lili – O samurai faz parte dos músculos do grupo, eu sou o cérebro. Todo e qualquer acerto passa por mim, ele no máximo opina. Certo, queridos? – ela olhava para o restante do grupo, todos meneavam as cabeças entre surpresos e assustados – Então, qual é a missão exatamente? E que rapazinho esperto e amável é este, seu filho?
Pai e filho se entreolharam, que menina simpática. Miguel ficou satisfeito de ver uma garota com tino comercial tão apurado, então começou as explicações.
-Claro, vamos aos detalhes. Primeiro, não somos um grupo grande, apenas eu e este rapaz aqui, tínhamos uma escolta até ontem, mas nos abandonaram por um pagamento maior. A proteção seria para eu, meu filho, minha carroça e meus dois trobos. E o trajeto é daqui até Bek’ground, uma pequena cidade em Deheon, próxima da fronteira com Bielefeld. Sabe, normalmente não venderíamos nossas coisas tão longe, mas o menino queria muito ver a Feira.
-Proteção para duas pessoas, certo – Lili calculava.
Tomoe a honra ferida, observava os dois. Aquela pequena mulher bonita e atrevida, como ousava. Ele encerraria a disputa. Pensou em um valor alto, que possibilitaria uma discussão, uma negociação. Lembrou-se da empolgação da halfling com a aposta, o dinheiro fora de Tamu-ra e Ni-Tamu-ra fazia menos sentido.
-Trinta moedas de ouro! – disse Tomoe.
-Fechado! – se adiantou Miguel.
Lili era puro ódio, ressentimento e instinto assassino.

*****

A noite já ia alta, os sons da mata povoavam o ar ao redor, árvores centenárias, lares de pássaros e roedores, todos observavam a figura silenciosa, abaixo Gajan caminhava. Ia pela trilha apagada, tocha na mão esquerda, o cheiro de óleo incomodava, avançava devagar, tentando não chamar muita atenção, o que era difícil, o solo era esburacado, seus sapatos feitos para a cidade tornavam a travessia sofrível. Ele não ligava para a dor. Sua mente estava agitada, aquele era um passo decisivo para os planos do Mestre, não iria cometer erros, tudo seria perfeito. Por mais trinta minutos caminhou, fez voltas, chegou então a uma pequena clareira, uma fogueira queimava, sobre ela nacos de carne ainda úmidos de sangue, junto do fogo um lobo rosnou para o intruso. Das sombras emergiu uma criatura pequena, pouco menos de um metro, traços reptilianos, diria um observador desatento, dracônicos um mais informado.
-Olá, seinhor, nois tar pronto, quando ser? – a criatura falava com uma voz fina, parecia uma criança.
-Prontos desde antis de antis de antis de ontem, seinhor bom – outra criatura saiu da escuridão, o rosto marcado por agressões pretéritas, uma cicatriz tomando o lugar do olho direito.
-Sim, estamos prontos, a criança deve ser capturada amanhã, tudo já foi arranjado. Ele costuma se aproximar da orla da floresta, toda manhã é assim – o cheiro, aparência e existência das criaturas e enojava, teve de controlar o estômago.
-Claro, claro, seinhor da cidade, nós acha ele, prendi, arranha um poco pra educá direito e tenta deixá o lobo longe, ele gosta de filhoti humano hihihi – o maior deles riu de um jeito desagradável.
-Tentar não, deixem o lobo longe dele! Qualquer dano grave e vocês não estarão aqui para a próxima refeição! – Gajan olhou cada um do bando, que ele sequer sabia quantos eram, nos olhos, ao menos os que estavam visíveis – Amanhã, na orla, o menino. Deixem o pai vivo, preciso dele vivo e não muito machucado, batam só o suficiente, nada de arrancar pedaços, não quero ele morto por perder sangue!
-Qui chato, qui ruim assim, o seinhor da cidade e da bota não deixa fazer nada – uma voz da escuridão reclamou.
-Dou ouro. Façam como falei e terão ouro. E carne seca. E – ele respirou fundo – carcaça de boi fresquinha.
Os kobolds vibraram, uma carcaça inteira, sem miséria, quase cheia de carne, nada de coelhos, de esquilos, dias novos, uma carcaça quase nova.
Gajan deixou as pequenas criaturas comemorando, tinha alguns preparativos por fazer e a caminhada era longa.

*****

Tomoe tinha um olhar satisfeito. Miguel e Pedro já dormiam, Erudhir caminhava na rua, procurando uma boa árvore para encostar e passar a noite, Bain após ver a cara de Lili foi para seu quarto e trancou a porta, Eld resolvera ir dormir, pois a discussão que se seguiria não lhe interessava, apenas a justiça. No quarto, Tomoe observava Lili, que o acompanhara sem convite, entrar, fechar a porta e então o olhar com uma cara irritada. Os dois se encaravam há quase cinco minutos.
-Cara, tu só pode ser burro – Lili abriu a conversa.
-Veja como fala, pequena! Sou um samurai! – Tomoe não entendia a irritação da halfling, tão pouco a dificuldade em seguir os protocolos sociais.
-Velho, trinta moedas? Ele pagaria o dobro, talvez o triplo! A gente vai atravessar a porra do Reinado! Eu devia dar com a mão nessa tua cara! – Lili tentara aplicar a bofetada, de fato, logo após Tomoe fechar o acordo, mas ele levantara rápido demais.
-Menina, olhe...
-QUEM É MENINA AQUI? Eu sou mais velha que você, moleque, me respeita! Agora cê vai ouvir! Senta ai e fica quieto! – a halflling urrava, Tomoe sentou, intimidado, querendo diminuir a comoção e, também, um pouco curioso, estranhamente, de forma positiva – É o seguinte, a gente é um grupo, entende? Uma droga de grupo! Quando você foi lá apanhar do elfo, eu joguei pedra nele? Eu botei graxa na espada dele? Não! Devia? Devia! Mas não fiz nada disso, porque o guerreiro é você, cara! Agora, eu sou a negociadora, quando é pra conversar você chama o paladino? Não. Você conversa? Não! Sabe por qual razão? Porque ele não fala e você fala mal. Eu falo bem, você fala mal! Você é bom em bater nos outros, apesar de ter que melhorar, eu sou boa em conversar, não ser vista e em outras coisas. Pra isso, você me chama, pra bater nos outros, chamo você. Estamos acertados?
-Hm, ã, sim – Tomoe não conseguia argumentar, ela era boa.
-Então boa noite – e saiu batendo a porta.

quarta-feira, 4 de janeiro de 2017

Sob a Lua de Ragnar | Cidade de Heróis | Parte 2

VOLUME I - SOB A LUA DE RAGNAR

Capítulo 1: Cidade de Heróis




A guarda de Malpetrim ainda procurava a garota que havia agredido os comerciantes com bolas de madeira, um ou outro passando apressado, a descrição era de uma criança com olhar cínico e maquiavélico, uma mulher pequena, lembrava uma menina de 12 anos. Além disto, uma halfling de botas, onde já se vira aquilo.
-Você caiu com um elfo na primeira luta, Tomoe, é só olhar a chave na banca de apostas! – Lili estava irritada.
-Não vou entrar um uma banca de apostas – disse o ofendido samurai.
-São apostas legais, Tomoe. Não tem problemas, sabe? Olha, faz como achar melhor. É um elfo, e estão apostando muito nele, o que não parece ser bom, para falar a verdade. Espero que você seja bom, porque parece que ele é – Lili falava e andava, tentando se afastar do samurai que chamava muita atenção.
-Legais ou não, são jogos de azar, são desprezíveis e um veneno para a alma, pequena. E não duvide de minhas capacidades, o elfo sofrerá com minha katana! A arma de meus ancestrais o partirá ao meio no duelo! – Tomoe quase gritava de entusiasmo.
-Armas reais são proibidas, você vai usar uma espada de madeira comum – esclareceu Eld, impossibilitado de esconder o sorriso que lhe brotou no rosto.
-Não... vou... não...
-É, não – confirmou Lili.
-Que tipo de duelo é este?? Sem armas? – a indignação em pessoa.
-É um jogo, Tomoe, não é para pessoas saírem feridas – acalmou Erudhir.
Grupos de entusiastas pelas provas passavam apressados pelo tamuriano parado, tentando aceitar que não usaria sua katana. Aquilo não fazia o menor sentido, refletiu. Era quase um insulto.
-Apenas um torneio, mas na ficha consta a palavra duelo. Que jogo sujo, que vergonha para os participantes e organizadores – Tomoe sentou em um banco e se deixou ficar.
Jovens se acotovelavam e empurravam para conseguir o melhor lugar na arena aberta, vendedores corriam o lugar e ofereciam as delícias locais, alguns cambistas negociavam ingressos, estes eram cobrados apenas pelos camarotes, onde comerciantes e nobres podiam assistir as disputas longe da ralé.
-Vamos ver no que vai dar isso, haha! – riu, Erudhir, tentando dissipar o nervosismo.
-Boa sorte, Erudhir, fique tranquilo. Li que o ideal é que prenda a respiração para atirar a flecha, ajuda na mira – instruiu o feiticeiro.
-Ah, obrigado, vai ficar tudo bem, já faço isso tem algumas décadas, haha – rindo nervoso.
No centro da improvisada arena, no meio de uma larga rua fechada, foram posicionados alguns alvos, atrás muros de proteção de palha e madeira, além da cortesia de magias de proteção por conta da loja de itens mágicos de Alberto Ganache, mago, comerciante e cozinheiro. Um homem foi até o centro e começou a falar das maravilhas de Arton, de Petrinia e de Malpetrim, da honra de participar do tradicional torneio. A multidão vaiava, queriam flechas e diversão. Bardos cantavam, agora, o hino de Petrinia e tocavam seus instrumentos.
Do outro lado da arena o grupo notou um rosto familiar, era o sujeito da taverna, o atravessador de heróis. Ele acenou e sorriu, para em seguida sumir na multidão.
-Ele vai estar observando, Erudhir – disse Tomoe – temos que fazer nossa parte.
-Sim – o elfo sabia que deveriam agir bem naquele momento.
No centro da arena as regras começavam a ser explicadas, a eminência do início fez o público passar de hostil para apreensivo, nomes começaram a ser chamados, eram os primeiros participantes. Ouviu-se chamar o nome do elfo.
-Minha vez, me desejem sorte, pois só passa um.
-Não há sorte, só há o que é justo – afirmou Eld, tão rígido que fez uma pedra parecer mole.
Erudhir caminhou até o centro da arena, cumprimentou os que já estavam lá, um halfling de rosto redondo e um pequeno arco, um meio-orc, forte, com um arco imenso, um goblin usando uma vassoura com uma corda amarrada e dois humanos, estes pareciam melhores, arcos bem cuidados, os seguravam de maneira confiante. O clérigo tomou posição. Cada um teria direito a três disparos. Erudhir retesou o arco, os músculos do braço treinado exercendo a força necessária para puxar a corda resistente, a flecha pousada delicadamente ao lado do rosto, um olhar, soltou. O projétil voou rápido e atingiu quase o centro do alvo, não a pontuação máxima, mas um excelente tiro. A primeira saraivada fez o clérigo de Allihanna perceber quem eram seus oponentes, e ele só precisaria se preocupar com dois, o humano de cabelo curto e barba longa acertou o alvo próximo ao centro, não a pontuação máxima, mas um tiro muito bom, o outro, também humano, cabelos negros trançados na altura da cintura, barba feita, roupa preta, um osso pendurado no arco, cravou a flecha na pontuação máxima, o melhor tiro da rodada. Chamou a atenção do elfo a velocidade com que o último atirava, puxava e soltava  a corda instintivamente, como que fizesse parte de sua rotina. Admirável, pensou, péssimo para os concorrentes.
Mais uma saraivada, o goblin arrebentou a corda, puxou um trapo e amarrou na vassoura velha que fazia o trabalho de um arco, incrivelmente as flechas eram arremessadas, o halfling mirava por muito tempo, o braço pesava e as flechas perdiam alcance, caindo antes do alvo. O meio-orc, notou, usava o arco como se nada fosse, suas flechas entravam até a metade no alvo, sempre longe do centro. Erudhir novamente puxou a corda, a madeira de Lammor rangeu, "me guie deusa", pensou, e a flecha voou. Pontuação máxima. O humano de barba não igualou o tiro, o outro, porém, acertou a flecha anterior, destruindo-a. Aquele homem era muito habilidoso. Não havia nada a fazer, seria necessário um tiro perfeito e que o homem errasse ao menos um pouco, algo menos que a perfeição seria o sifuciente, não era impossível.
Última rodada. o meio-orc já havia indo embora e o goblin desistido, a vassoura quebrada no chão. Era o derradeiro tiro, a última chance, para ultrapassar o humano de roupa preta seria necessário um tiro perfeito. Retesou o arco, fez novamente a madeira ranger, a flecha encostada no rosto, olhos no alvo, segurou a respiração, como havia dito o feiticeiro, olhos no alvo, ouviu o arco do homem de preto retesar e ser solto, olhos no alvo, soltou. O homem de barba fez um bom tiro, não perfeito, estava fora, Erudhir acertou a pontuação máxima, olhou para o lado e não viu o homem de preto, ele já caminhava para fora da arena, sua flecha no centro do alvo, atravessando as duas anteriores. O elfo sorriu, existiam pessoas muito habilidosas no mundo, por algum motivo aquilo o alegrou. Vaias para o goblin, aplausos para os humanos e, surpreso, Erudhir notou que para ele, o halfling passava um chapéu e angariava bolinhos e outros quitutes da massa na cerca.
O clérigo caminhou até o grupo, para seu estranhamento: sorrisos.
-Amigo Erudhir! – Tomoe sorria com a boca, olhos, mãos e tudo mais.
-Tomoe? Você está bem? Descul... – o elfo começou, sem poder terminar.
-Ganhamos trinta tibares de ouro nas apostas! Trinta! Lili apostou no cara de preto! – pudores com jogos de azar esquecidos, a miséria para trás.
-Você apostou em outro? – Erudhir estava quase chateado.
-Lili disse que ele era muito bom, muito bom mesmo, iríamos ficar sem dinheiro hoje, fiz pelo bem do grupo! – Tomoe cravou os olhos no clérigo, o pragmatismo em forma de samurai – Agora é minha vez! Irei lançar todos ao chão! – a euforia em forma de tamuriano.
Os jogos prosseguiram, ao fim das disputas de arco o homem vestido de preto conseguiu o segundo lugar, ultrapassado por um elfo barrigudo de olhar preguiçoso e mira sobrenatural, seu nome era Sandolin. Para muitos a Grande Feira é uma oportunidade de negócios, para outros o sustento. Sandolin se encaixava no último caso. Sozinho, bêbado costumas, o prêmio do torneio lhe garantia bebida por meses sem a necessidade de trabalhar novamente, as tavernas de Malpetrim sempre torciam pelo elfo, uma garantia de lucro. Em terceiro lugar uma jovem halfling, a habilidade do tamanho do bolo que trazia na mochila - que não largava nem para atirar.
Após a breve premiação pessoas rapidamente correram para alterar a arena. Rapazes de calças curtas e sapatos surrados tiravam os alvos, carregavam a palha e madeira para fora da arena. Um mago dissipou a magia, fez surgir aves, luzes e um dragão piscou amistoso no céu daquele dia, ele fazia um sinal de positivo com o pata dianteira direita. Mais jovens traziam agora hastes de madeira dos mais variados tamanhos, as armas. Espadas curtas, longas, bastadas, adagas, as mais variadas modalidades.
Era a vez da esgrima, a prova mais popular da feira. O público vibrava, a esgrima, não raro, proporcionava ossos quebrados e gritos de dor, uma diversão saudável e barata para qualquer cidadão de Malpetrim. Crianças tinham cartazes com nomes de alguns competidores, rapazes e moças gritavam os nomes de seus favoritos, suas beldades. Tomoe estava na terceira chave, a primeira luta seria contra um elfo conhecido apenas por “Lulu”, tradicional participante, já havia ganho o torneio duas vezes, porém já há mais de 20 anos, para um elfo, ontem.
Crianças gritavam por seus ídolos e choravam ao vê-los saírem derrotados, machucados, sem dentes. Algumas se divertiam com isto. Então Tomoe adentrou à arena, passos firmes, decididos, na cintura duas espadas de madeira, uma longa e outra curta. Pelas regras do torneio bastava tocar o adversário para o golpe ser computado, de forma que Tomoe sacou apenas uma das espadas pela precisão do ataque. Seu adversário entrou em seguida, era um pouco menor que o samurai, físico mais modesto, cabelos curtos e olhos de rosados brilhantes, tinha um ar despreocupado que irritava Tomoe, trazia também duas armas, porém uma espada curta e outra ainda menor, uma adaga de madeira. Gritos por toda a parte quando o elfo acenou, crianças, jovens, adultos, muitos pareciam admira-lo.
-Eu lhe cumprimento, er, Lulu. Que vença o melhor.
-É um prazer, tamuriano, que nossa luta alegre aos espectadores – respondeu o elfo, sua voz era melodiosa.
 Os olhos negros do samurai analisavam o elfo, ele sabia reconhecer talento, e ali havia muito, seu adversário, percebia, lhe analisava desde o momento em que entrou na arena. O sinal foi dado, Tomoe segurou firmemente a espada com as duas mãos, o elfo sacou as armas, segurava-as com aparente desleixo, que não enganou Tomoe, aquilo era habilidade. Por alguns instantes apenas se olharam, se mediam, reconheciam a força um do outro. Então o samurai avançou. Rápido, Tomoe tentou golpear o pescoço do elfo com a ponta da espada, sendo bloqueado facilmente pela espada curta e, com a adaga, em um movimento sutil e despretensioso, o adversário tocou levemente a mão de Tomoe.
-Lulu um, Tomoe zero! – gritou o juiz da partida.
Gritos. Urros. Tomoe sentiu a pressão da torcida, não o intimidou. Lulu acenou para todos, mais barulho.
Os dois tomaram novamente posição, durante as eliminatórias cada golpe interrompia a luta, para evitar que lutadores muito fortes machucassem os muito fracos. Tomoe olhou com outros olhos para o elfo, ele era bom, melhor do que imaginara. Muito bom. Era difícil admitir, mas sequer notara o ataque até ser atingido. Muito bom. Forte. Desta vez o elfo tomou a iniciativa, o samurai aparou o golpe da espada, depois, pela esquerda, o da adaga. Lulu avançou com o corpo, mantendo a adaga parada no ar, impedindo a espada do adversário fosse liberada. Tocou a perna do tamuriano com a espada curta, de forma ainda mais suave que o golpe anterior.
Forte.
Mais gritos, mais aplausos, mais acenos do elfo, alguns beijos para moças na cerca, caretas para as crianças.
Novamente os dois em posição, Tomoe tomou outra vez a iniciativa, precisava de três golpes. Avançou como um raio, desta vez o elfo não bloqueou, fora pego de surpresa, o samurai avançou, espada no alto mirando o ombro esquerdo. Lulu com uma velocidade inumana deu um pequeno passo para frente, indo em direção ao ataque, e em seguida uma leve virada de corpo para a direita, saindo completamente do alcance do golpe. Impulsionou mais uma vez o corpo na direção de Tomoe e puxou o samurai, que com a força do próprio movimento se viu correndo rumo ao vazio. Sentiu o toque da adaga de madeira na nuca. Fim.
-Lulu três, Tomoe zero! Lulu avança! – sentenciou o juiz.
Tomoe estava impressionado, jamais perdera de forma tão brutal para qualquer um que não seu mestre. Assim como Erudhir, ele sentia uma estranha satisfação, aquele homem era forte. O público gritava o nome do elfo, ele retribuía com beijos e acenos, corria ao redor da arena, cochichava com moças, fingia bater em alguns rapazes.
Tomoe olhou para o grupo, a tristeza se fez presente, nem ao menos apostaram no outro. Ele ficou surpreso, Eld não tinha nenhum comentário desagradável. Talvez a luta não tenha sido vergonhosa como pensou.

*****

Do alto das escadas era possível ouvir palavras mágicas, um murmurar constante. Lá embaixo, no porão, carne convertida em pedra, pedra convertida em lama, lama convertida em pedra. Laura sumiu sem deixar rastros no mundo.

sábado, 3 de dezembro de 2016

Sob a Lua de Ragnar | Cidade de Heróis | Parte 1

VOLUME I - SOB A LUA DE RAGNAR

Capítulo 1: Cidade de Heróis



-Hahahaha! Somos o bando mais pobre da cidade, é certo! - riu Erudir.
-Observação vulgar e desnecessária, elfo. Acabamos de chegar na cidade, nossos recursos estão escassos, é apenas o início de nossa jornada rumo à glória e à destruição da Tormenta! - reagiu Tomoe, vestindo apenas a parte inferior da armadura e sandálias de palha.
-Você é um pobretão, é um fato. Um de nós - Eld olhava para Tomoe e percebia o óbvio enquanto polia o escudo
O samurai olhava aturdido para o paladino, que sempre soturno, calado, abria a boca apenas para lhes jogar obviedades atrevidas, não conhecia seu lugar, sequer era da Ordem da Luz, um lugar de guerreiros honrados e nobres, sua ordem nem ao menos ficava no Reinado. Não expôs o que pensava, não seria delicado. Não que o servo de Khalmyr parecesse se importar.
-Costumes bárbaros o de vocês, comentando intimidades desta forma! - a naturalidade demonstrada por seus companheiros frente à miséria chocava Tomoe.
-Falem por vocês - disse Lili - estou fazendo um bom dinheiro na Feira e fora dela. Acho que vou comprar outro par de botas, vi uma linda feita de couro de lagarto-elétrico.
-Deixe-os em paz, Lili. O samurai tem seus costumes, devemos respeitar - Bain argumentou, surgindo do alto da escada - Tamu-ra tem seus modos, todos bastante interessantes, mas contrastantes com os nossos aqui. Ele já deve estar fazendo uma concessão razoável aceitando uma união conosco, especialmente com você, Lili, uma especialista do sexo feminino.
-Ele não gosta de mulher? - questionou Lili.
-A questão, creio, de fato, deve tangenciar o campo do afeto, todavia de forma alguma se resume a ele - Bain sorria, gostava de ser didático.
-Vai cagar carroça abaixo e lamber as rodas, Bain, fala igual gente - Lili disse, sorrindo de forma delicada.
Bain olhou para cima, não sabia a razão pela qual ainda tentava. Ao baixar os olhos viu ao lado do grupo um homem de cabelos castanho escuros, barriga proeminente e vestindo um avental surrado tentando repetidamente interromper a discussão do grupo. O sujeito parecia constrangido demais para fazer sua presença ser notada claramente, até que juntou forças e falou.
-Senhores e senhora, a questão cultural é comovente, mas como fica a conta da taverna? São duas moedas de ouro. Não sei quanto tempo pretendem ficar, mas dado o teor da conversa gostaria de um sinal agora…
-Está me chamando de caloteiro, plebeu? - Tomoe procurava a espada - Deveria pôr um fim nisto, aqui e agora! Seria meu direito!
-Não seria - Eld informou.
-Não executo plebeus por suas línguas, paladino. É meu direito, ou seria, mas abro mão, raras vezes a honra vale uma vida. E a situação não é uma delas - Tomoe olhava para o homem, olhos cerrados, o desgosto explícito.
O taverneiro deu alguns passos para trás, com medo do tamuriano de tronco nu, estava a costumado a lidar com encrenqueiros, porém aquele homem parecia diferente, ele agia por algum dispositivo moral razoável, cretino, pensou ele, mas razoável, acima da ladainha vomitada dia após dia na taverna pelos tipos mais diversos. Deu mais um passo, se afastando do grupo, e então ouviu alguns poucos tibares em seu bolso, todos de cobre, lembrou da família, do que lhes trazia seu sustento e soube o que fazer.
-Por favor, por favor, me perdoem, mas preciso saber se têm dinheiro para sua estadia, este é meu sustento. Tenho família e... – começou, sendo interrompido.
-Seria um crime utilizar os serviços e não pagar, faça sua parte Tomoe, já fizemos a nossa dormindo. Pague – sentenciou Eld, olhos plenos de justiça cravados no samurai.
-Você é a nossa carteira por enquanto, Tomoe, lamento por isso – Erudhir já não ria, apenas olhava para o homem com compaixão.
-Vós sois dos piores! Pagarei, pois é o devido e justo, é claro! Entretanto temos de arrumar novas fontes de renda, esta aqui – apontou para sua bolsa de ouro – mingua a olhos vistos – e entregou a quantia devida ao homem.
-Grato, senhores, desculpem qualquer inconveniente – e pedindo a permissão de todos, se afastou.
-Extorquindo pais de família, que vergonha – julgou Eld, o símbolo de Khalmyr no escudo e na alma.
Tomoe olhou para o paladino, tal afirmação usualmente levaria a um combate, mas ele se sentia exausto apenas de pensar na discussão que se seguiria antes de cruzarem armas. Girou os olhos e viu o clérigo de Allihanna olhando uma cozinheira trabalhando, parecia entretido com a mulher gorda e suada que preparava o desjejum, um pouco além Bain conversava com a halfling alguma coisa que ele não ouvia, ela penteava os cabelos negros de um jeito bonito, aparentemente ignorando o que o feiticeiro tentava dizer. Perseverança, pensou, perseverança. Aquele grupo incomum parecia confiável, apesar de seus modos terríveis, todos pareciam comprometidos e, em sua grande maioria, fortes. Vingaria seu senhor, sua família, seu reino, vingaria Arton.

*****

Gajan acordou cedo naquela manhã ainda sob o efeito da visita de seu mestre, sua voz fresca na memória, a alegria de ter o ouvido pronunciar seu nome, lhe chamar de aprendiz... Levantou da cama rígida, deu dois passos até a cômoda, onde lavou o rosto na bacia de água, trocou de roupa, vestiu calça, a camisa leve e uma jaqueta, quase um uniforme. Foi até a porta e a abriu, girou nos calcanhares e trancou o cômodo. Desceu os degraus de madeira velha que levavam ao andar inferior, na cozinha abocanhou um pedaço de pão com nozes do dia anterior, bebeu um pouco de chá frio, a menina iria chegar em uma hora. Lamentou por um segundo a iminente perda da garota, uma serva bastante competente, a casa era mantida tão limpa quanto desejava, o que era difícil. Afastou aqueles pensamentos da mente, o lamentar era uma ofensa ao mestre, as instruções foram claras. Na sala de pedra de decoração mínima um quadro de uma velha bem vestida, a quem chamava de mãe quando perguntado, enfeitava sozinho a parede, uma mesa de madeira escura com quatro cadeiras completava o lugar, não havia nada que chamasse a atenção. Seguiu pelo corredor até uma porta reforçada com ferro, abriu a fechadura pesada e desceu pela escada. No porão ascendeu dois lampiões e começou a trabalhar, retirando algumas pedras do chão, cavando a terra escura e úmida. Acumulou a terra em um canto, separou alguns pergaminhos e os deixou no chão, próximos ao entulho. Ouviu a porta da entrada dos fundos abrir com seu rangido característico.
-Olá – soou uma voz no andar de cima, era a garota.
Ela não deveria chegar tão cedo, só em cerca de trinta minutos, algo aconteceu. Já chegou atrasada mais de uma vez, cedo é a primeira, não está certo. Alguém descobriu? Foi enviada para averiguar as coisas sem levantar suspeitas. Alguém sabe de algo? O mestre disse que poderia acontecer, que alguém poderia desconfiar. Ela é uma isca. Não! Claro que não! Até ontem estava tudo bem, inexiste qualquer razão para agora ser de outro modo. Apenas pense, pense. Vá até ela e pergunte, como faz todo dia, seja simpático com a vermezinha, agradeça a Lena, a deusa nojenta da vida, faça parecer que é apenas um outro dia. Bateu as roupas, subiu a escada.

*****

Lili e suas botas novas guiavam o grupo Grande Feira adentro, Tomoe lhe pediu graciosamente, ainda na taverna, para encontrar a barraca de inscrições de esgrima, o elfo sorridente queria a de arco, ela não fazia ideia de onde ficavam, mas acharia. Caminhava de maneira confiante, como poucos halfling têm a capacidade de fazer no meio de uma multidão com o dobro de seu tamanho, esquivava dos desatentos, acertava os desavisados, seguia. Um bando de crianças passou correndo atrás de um goblin, ele tinha os olhos arregrados de medo, elas martelos de carne. Muitos ofereciam a chance de ganhar prêmios, do amor de uma donzela ao machado abençoado por Lena, que não poderia ferir ninguém, o que parecia um jeito bonito de dizer que não tinha fio. A procura durou cerca de vinte minutos, quando avistou uma grande placa onde se lia “Grande Torneio da Grande Feira de Malpetrim, Inscrições aqui”.
-É ali na frente, vocês dois sabem escrever?
-Pequena, todo samurai sabe escrever! – se irritou Tomoe.
-Sim, Lili, não haverá problemas, obrigado – agradeceu Erudhir, ainda incomodado com toda aquela gente ao redor.
-Certo, então peguem a fila e paguem a taxa, irei esperar com os outros ali perto da tenda do homem que cai na água – sorriu ela.
-Taxa? Mais dinheiro? – retrucou Tomoe, resignado. Olhou a bolsa já quase vazia de tibares, seu orgulho tamuriano secando uma lágrima que morreu antes de nascer.
Erudhir foi até o samurai, deu dois tapas em suas costas.
-As coisas vão melhorar, amigo, é hora de mostrar nosso potencial e quem sabe até ganhar algum ouro! – tentou aplacar a tristeza do jovem humano.
-Que Lin-Wu nos guie – disse Tomoe, balançando a cabeça.
Bain olhava para o homem sentado em uma tábua que ofendia aos transeuntes, especialmente os que compravam bolas de madeira para arremessar em um alvo à sua direita. O homem balançava as pernas no vazio sobre a água, enquanto um após o outro todos falhavam em lança-lo na tina de água abaixo. A situação ofendia a inteligência e a dignidade do aggelus, os humanos tinham seus encantos, mas este era um exemplo de como seu comportamento ainda era primitivo e vergonhoso em muitos aspectos, sabia que encontrara companheiros acima disto, que trilhavam um caminho mais razoável e digno. Olhou para o lado e viu Lili rindo, tomando lugar na fila para comprar bolas.
-Lili! – chamou Bain, chocado.
-Ah, nem vem, eu vou ganhar o prêmio, vou molhar aquele idiota e ainda acertar aquele moleque ali atrás com a primeira bola, o peste pisou em mim ontem – disse Lili, sem dar margem para uma conversa sobre o assunto.
-Acerte uma no homem que nos ofende, Lili – sugeriu Eld, como quem sugere justiça, honra e tudo o que é correto.
-Nossa, foi a coisa mais certa que você já disse desde que nos conhecemos! Acerto duas, a outra quando ele reclamar! – disse Lili, extasiada com a ideia – Ei, tudo bem você sugerir isso, não é contra alguma lei?
Eld fechou os olhos e virou de costas, pois a justiça imparcial era cega. Por dentro riu do som do homem gritando com a halfling, mais tarde faria penitência e não diria verdades cruas a respeito do feiticeiro, ficaria quite com seu deus.

*****

Após o cumprimento não ouvira mais a voz da menina, apenas o som de suas pequenas mãos limpando a mobília e varrendo o chão, os pequenos e leves pés caminhando pelo chão de pedra. Era uma menina bonita, um dia uma bela mulher, não, na verdade não, tal oportunidade não existiria. Uma pena, mas a beleza da meninice seria seu apogeu. Cuidadosamente subiu as escadas de pedra do porão, da porta olhou para fora, em direção ao corredor, discretamente, tentando manter o corpo oculto, a menina parecia trabalhar na sala. Lentamente alcançou o corredor e vislumbrou o cômodo onde estava a garota. Apenas ela, pequena, a cabeça alcançado a metade peito de um adulto, cabelos negros lisos até a metade das costas em trança, a pele avermelhada queimada do sol, usava um vestido azul puído, muito provavelmente herdado de irmãs mais velhas. Estava apenas limpando, como fazia em todos os dias de feira, tanta era a poeira que entrava pelas portas e janelas. Talvez um alarme falso, pensou.
-Menina – chamou.
Ela pulou assustada, olhou para trás e viu o homem parado na entrada da sala.
-Senhor, que susto! Desculpe pela hora! Mamãe veio para a cidade e vim na carroça! Foi bem mais rápido do que caminhar, espero que não seja um problema, senhor! - ela estava agitada, preocupada em ter ofendido de alguma forma o patrão.
Ele sabia que a mãe da menina vendia verduras da fazenda, era um motivo razoável e crível. Ela não tinha a barra do vestido empoeirado como de costume, fazia sentido.
-Claro que não, Laura, não há qualquer tipo de problema. Há pão com nozes na cozinha, fique à vontade, querida. Depois me encontre no porão, tenho uma pequena tarefa, lhe pagarei um extra por ela, certamente sua mãe irá apreciar – sorriu – Que Lena lhe ilumine o dia – a bile lhe subindo.
-O senhor é tão bom para mim, obrigada! Irei em logo, logo! – sorriu a jovem.
Ele caminhou até o porão, sem se preocupar em parecer furtivo desta vez, continuando a cavar. Na medida em que retirava a terra do buraco também suas preocupações sumiam, o mestre lhe dera a missão, a ordem, ele não errava, é claro que se houvesse gente bisbilhotando teria sido avisado, aquele tipo de teste não era útil ao seu senhor. Após alguns minutos havia tirado terra o suficiente. Organizou o lugar, fez alguns símbolos no chão com o líquido vermelho retirado de um frasco, o cheiro ferroso subiu. Foi até a bacia de água que trouxera ao porão, lavou o rosto e os braços, com um pano úmido tirou a terra acumulada nas roupas. Tirou então do bolso um pequeno tecido vermelho, havia cortado do braço esquerdo da poltrona em seu quarto, onde o mestre sentara e pousara as mãos. Levou o veludo aos lábios e beijou, sentiu o estômago pesado e cabeça leve.
-Senhor? - ecoou ao longe uma voz.
Ele aspirava o ar com violência, ressoando, queria que aquele aroma fizesse parte de seu corpo, de sua alma. Beijou o tecido, lambeu-o lentamente e com prazer. Sentia-se pecando sem realmente se importar, apenas queria... então ouviu.
-Desculpe, senhor? Quer que volte depois? – disse a garota, reticente, olhando para as costas do dono da casa.
Gajan guardou lentamente o tecido em seu bolso.
-Não, claro que não – tentava se recompor, ajeitava os cabelos com as mãos e controlava a respiração – Não há qualquer necessidade.
Menina nojenta, interrompera seu momento, garota maldita. Antes não iria apenas matá-la, agora iria faze-la sofrer. Iria arrancar toda a pele, furar os olhos e cortar a língua, iria trazer serpentes e lhes dar um banquete, ela iria gritar sem fazer sons, iria implorar para morrer.

quarta-feira, 23 de novembro de 2016

Sob a Lua de Ragnar | Prólogo | Parte 3

VOLUME I - SOB A LUA DE RAGNAR

Prólogo



-Eles são totalmente confiáveis – sussurrou Lili – entraram em uma briga sem ter nada a ganhar e não me enxotaram depois que fui conversar, bem, não falaram comigo por mais de uma hora, mas já é algo, né?
-É um bom ponto – ponderou Bain – Viemos procurar pessoas confiáveis, eles parecem, de fato, ser um grupo que preenche os requisitos.
-Com certeza, com certeza, aquele samurai é forte, ele tem uma espada de fogo – Lili olhava para Tomoe enquanto cochichava com Bain – e parece saber manejar – Quer dizer ele no mínimo faz parecer que sabe, o que já é quase a mesma coisa.
-Entendo, fogo, uma espada de fogo... um homem de bom gosto – Bain concordou, olhos fixos na katana do samurai.
-Sabia que você ia gostar – encerrou Lili.
Bain olhou para os lados, se fazendo de desentendido enquanto a halfling se adiantou.
-Como eu disse, ele concordou, parece que é bastante razoável que formemos um grupo, será mais seguro para cada um de nós e aumentará nossas chances de encontrar contratos, aventuras e oportunidades. Modéstia à parte, minha ideia é muito boa.
-O que for preciso, preciso reunir poder para retomar Tamura – resmungou Tomoe.
Erudhir parecia um pouco distante, levemente alcoolizado e imerso em sua curiosidade em relação às formas de lazer humano. Ele observava um pequeno grupo jogando cartas, todos apostavam e tentavam simultaneamente roubar no jogo, sendo que nenhum estava sóbrio o suficiente para tanto, tão pouco para notar que todos os outros roubavam, ou tentavam ao menos, tão pouco para notar que as quantias apostadas, recuperadas e roubadas eram aleatoriamente jogadas ou retiradas da mesa, sem qualquer relação com o valor dito ao se fazer a jogada. Erudhir ria daquilo.
-Não gosto de ladinos nem de arcanos – disse Eld – provavelmente trarão problema. Que seja, ela é péssima ladina, foi pega por um bêbado, fácil de ficar de olho.
Lili ouviu o comentário do paladino, já estava se acostumando com o fato de que ele só abria a boca para ofender alguém com uma verdade.
-... acho que isso encerra o assunto – disse ela – imagino que esta é uma boa taverna para ficarmos, o preço é baixo, não é muito suja e fica perto do centro da Feira. O elfo e o tamuriano talvez tenham interesse em saber, amanhã é dia de torneio, haverá disputa de arco e esgrima.
-Olá – disse um homem de repente, chegando no meio do grupo.
Todos olharam para o estranho falava.
-Desculpem, não pude deixar de notar o grupo que se formava – disse o homem – Permitam-me, meu nome é Erídias Mikatas, trabalho aqui em Malpetrim recrutando jovens promissores!  E este grupo é promissor! Diversificado, bastante completo! – continuou ele.
O homem tinha estatura um pouco acima da média, era robusto, sem ser forte, longos cabelos lisos e loiros penteados cuidadosamente para trás, pele alva, olhos azuis profundos e, ao contrário da grande maioria dos frequentadores da taverna, cheirava bem. Usava roupas ajustadas, personalizadas, uma calça verde-escura de um bom tecido, camisa branca de botões e por cima uma jaqueta de veludo azul com botões prateados. Parecia bem-sucedido, emanava empolgação e oportunidades.
-Deixa ver se eu entendi, você é um atravessador? Alguém precisa de aventureiros, você encontra aventureiros, os aventureiros fazem o trabalho, o cara paga e você paga os aventureiros, ficando, claro, com uma parte. Entendi bem? – perguntou Lili, um pouco irritada por não ter pensado em algo tão genial antes.
-Exato! Sem contratos não há aventuras, ou quase! E sem aventureiros muita coisa deixa de ser feita. Se uma parte não encontra a outra, bastante gente fica desapontada, pobre e, não raro, morta. Sou um facilitador! Entretanto é apenas uma faceta minha, também gosto de guiar, de encorajar e ganhar um dinheiro fácil com apostas. E foi esta última parte, por enquanto, que me trouxe aqui – sorriu o terceirizador de aventureiros.
-Guiar? – indagou Bain – Poderia ser mais claro quanto a esta parte?
Eld olhava desconfiado para o homem, como olhava para qualquer ser humano. Não gostava de Erídias, parecia falso e pouco confiável, não gostava da ideia de ser agenciado, a justiça age sem atravessadores. Observou o homem que conversava com os demais, explicando sobre a Grande Feira, sobre algumas questões econômicas envolvidas, anotando em um pedaço de pergaminho os locais e horários das inscrições de arco e esgrima, pois queria ver como o elfo e o samurai se saiam, poderiam ser azarões e ele ganharia dinheiro. Seus gestos eram fluidos, quase felinos. Eld odiava gatos. Todos. Humanos ele apenas desprezava e ignorava sempre que possível. De forma sutil ele se afastou do grupo, puxando a cadeira para um canto. Lá cochilou enquanto os demais discutiam coisas insignificantes, tais como ganhar dinheiro e poder comer nos próximos dias, Eld não suportava estes pormenores.
-Certo, certo, acho que por enquanto é isso. Inscrevam-se! Amanhã poderei ver se foi uma boa ideia vir até aqui e falar com vocês! Espero que mais tarde possamos tratar de outros assuntos, tais como contratos, antes quero ver algumas de suas habilidades. Inscrevam-se! – frisou Erídias, e dizendo isto se afastou acenando para todos.
-Por favor, receba meus agradecimentos – Tomoe tomou a frente do grupo e fez uma breve saudação, curvando levemente o corpo para frente – Que possamos continuar esta conversa depois de provarmos nosso valor.
Erídias sorriu e acenou com a cabeça, devolvendo com uma pequena mesura a saudação, virou de costas e subiu a escada em direção à porta.
Naquele homem Tomoe via alguém que poderia lhe guiar a lordes e senhores poderosos, todos contatos importantes para seus planos futuros. Aquela era sua primeira chance de mostrar seu valor, suas capacidades, por anos ele treinou corpo e espírito, não falharia. O samurai olhou para a espada em sua cintura, lembrou da tarde de primavera, mais de quinze anos atrás, quando recebeu das mãos do avô a arma. Foi o dia no qual completou seu treinamento básico de dez anos e se tornava um homem. Nada disto foi suficiente para salvar Tamu-ra da Tormenta, sequer perto de ser suficiente. Tomoe era fraco. E odiava sua própria fraqueza. Tomoe levantou os olhos e viu seu companheiro clérigo de Allihanna. Não entendia como o elfo podia ser tão positivo e descontraído, tendo Lennórien e o todos os reinos élficos sido destruídos pelos goblinóides de Lammor.
Erudhir estava ainda olhando para as pessoas da taverna, rindo de alguns bêbados, admirando a beleza crua das humanas, se interessava especialmente pela pressa humana em viver. O elfo, de certa forma, invejava os humanos, tinham uma deusa presente em cada ação de cada dia de suas vidas. Humanos viviam pouco, não possuíam habilidades inatas, não possuíam qualquer graça, todavia, eram incríveis. E tinham uma deusa admirável. Os elfos tinham Glórienn. Por um momento sua boca se contorceu e pequenas rugas se acumularam entre as sobrancelhas do rosto delicado.
-Prezados, foi um dia atribulado. Subirei para meu quarto, pretendo descansar para o dia de amanhã, que promete ser qualquer coisa de promissor. Uma ótima noite para todos, que Wynna lhes proteja. E, novamente, foi um prazer – desejou Bain, subindo para os quartos.
-É, vou nessa. Furo quem tentar me olhar pela fechadura – ameaçou graciosamente Lili, subindo as escadas de forma suspeita atrás de um grupo que tivera sorte no jogo, mas que agora estava já um tanto embriagado e vulnerável.
-Não temos um estábulo por aqui, Erudhir, talvez um quarto quieto te ajude – disse Tomoe, balançando a mão esquerda em frente aos olhos do elfo e lhe trazendo à realidade.
-Ah, sim, vamos ver. Um pouco de silêncio pode ajudar, mas fico no chão – assentiu ele.
Os dois subiram deixando a algazarra da taverna para trás. Lá também ficou um paladino, dormindo em um canto escuro.

*****

Tenebra, a deusa da noite e das trevas, já cobria o mundo com seu manto, a lua ia alta expondo becos e ruas sujas de lama e lixo, comerciantes recolhiam mercadorias e fechavam barracas, outros ainda insistiam e disputavam os últimos clientes. Através da pequena janela no segundo andar de uma casa ele observava o vai e vem das gentes. Ele aguardava. Por anos havia ansiado pela oportunidade, pela chance. Ela chegara. Olhou para dentro do quarto no qual pacientemente, uma vez mais, aguardava. Nada. Todo o ambiente estava impecavelmente limpo, fazia questão de manter o cômodo assim. Puro, imaculado. Não que fosse necessário, era, porém, sua vontade. Uma demonstração de afeto e cuidado para com o convidado, que certamente não passaria despercebida.
Voltou os olhos novamente para a rua, algumas crianças corriam atrás de um cachorro, duas meninas andavam calmamente de mãos dadas e com vestidos de festa, uma delas tinha sangue élfico, notou. Ambas deram passos rápidos quando um homem com roupas rasgadas e sujas se aproximou. Sorriu para aquilo e então lembrou. Lembrou de sua surpresa, anos atrás, no dia em que conheceu aquele que agora tinha a posição de seu mestre, seu tutor. Riu. Um viajante, quem poderia dar alguma coisa por um viajante? Um maltrapilho! E ele sussurrou a senha. A senha! Nos lábios de um mendigo! Na rua as pessoas riram quando abraçou o decrépito homem e, com afeto e zelo, o levou até sua própria casa “gostaria de entrar, caro amigo? ”, “que tal um cobertor para aquecer o corpo? Entre, por favor”. E o mendigo entrou. Já se contavam cinco anos. Cinco longos anos. Para seu mestre era nada, um vislumbre, para ele, mero humano desprovido de poder, uma parcela importante de uma vida. Tornou a olhar para dentro. Ninguém.
Do lado de fora um bardo cantava uma balada infame sobre Marah e Keenn, de como a deusa lhe aplacava a fúria guerreira. Torceu a boca para aquilo, deuses pequenos e tolos. Pelo canto dos olhos notou que o ambiente havia se alterado. Por um instante a sala ficou mais escura do que estivera até então. Ele olhou para o canto do quarto, onde uma poltrona de veludo carmesim estava posicionada, um conforto para o corpo de seu mestre. Viu um ponto escuro crescer, tomar forma humanoide e sentar no lugar de honra.
-A poltrona é uma extravagância – disse uma voz firme e poderosa, ao mesmo tempo reconfortante e agradável.
-Peço seu perdão, meu senhor – suplicou o homem, joelho direito apoiado no chão, olhos cerrados, na testa o suor se acumulava. Nervosismo, apreensão, ansiedade, idolatria.
-Levante. Temos coisas a tratar – ordenou o convidado.
O anfitrião se pôs de pé, levantou os olhos e viu um homem, pele levemente esverdeada, pequenas escamas cobrindo o rosto, um nariz vestigial, quase um detalhe, a boca sem lábios. O capuz recolhido mostrava uma cabeça sem cabelos, os olhos duas esferas amareladas com pupilas verticais. Aqueles olhos atraiam tudo a sua volta, havia uma força poderosa ali, era o poder de seu mestre, de seu tutor, daquele que lhe iniciara nos mistérios da ordem.
-Mais alguém frequenta esta casa? Este quarto? – quis saber o mestre.
-Apenas uma menina, não mais de quinze anos. Ela limpa o lugar – respondeu.
-Ela pode falar deste quarto, desta sua cadeira destoante de toda casa, de sua solidão, pode um dia ouvir por trás das portas e paredes. Mate-a. Faça o corpo desaparecer. Faça longe – ordenou o homem no canto da sala.
-Será feito, meu senhor. Não voltará a acontecer, peço seu perdão por esta estupidez – disse, o peito apertado pela preocupação que trouxera para seu amado tutor, o gosto ferroso de sangue inundando a boca pelo lábio mordido.
Por um momento se fez silêncio, nenhum dos dois pronunciou palavra, o homem sentado observava impassível o humano, que angustiado travava uma luta íntima para aceitar seus atos irresponsáveis e falhos. O ser ofídico parecia extrair prazer do sofrimento daquele homem, de saber que uma palavra poderia lhe causar dor, que cada pequeno sinal de desaprovação traria consequências para vida daquele ser. Ele sorriu e, para deleite do humano, falou com sua voz real.
-E o plano? Já encontrou um garoto adequado? Uma disssstraççção? Informe, Gajjjan, meu aprendizzz...
Uma onda de prazer tomou conta do corpo do homem, os olhos lacrimejaram e se voltaram para o teto do quarto, seus braços envolveram o próprio tórax em um abraço solitário, as pernas faltaram e ele estremeceu, a face entumecida. Aprendiz... aprendiz... aprendiz... a palavra rolava por sua mente, se espalhava e tocava cada canto, ele queria que ela estivesse em todo lugar. Aprendiz... sim, sim, sim... o... o...
 -Gajjjan... – a voz se fez ouvir novamente.
-Perdão, senhor! – disse, tentando se recuperar do devaneio, o corpo ainda trêmulo e úmido – É claro. O plano está sendo executado. O garoto foi escolhido, fiz os contatos solicitados, contratei dois grupos independentes, para garantir que a tarefa fosse executada. A distração está sendo providenciada, até amanhã terei tudo resolvido e sob controle.
O homem de olhos amarelos balançou a cabeça e apoiando as mãos na poltrona levantou, fez um breve gesto, murmurou algumas palavras e uma sombra se expandiu da palma de sua mão, crescendo até tomar todo seu corpo e desaparecer.
Gajan, agora sozinho, por alguns instantes observou o assento deixado vago. O coração martelando o peito, a respiração ofegante. Caminhou lentamente até a poltrona, observou o veludo limpo, caro e bem cuidado, ajoelhou em frente ao móvel e beijou um dos pés de madeira, em êxtase.




Ilustração de Amanda Mattos Della Lucia

segunda-feira, 21 de novembro de 2016

Sob a Lua de Ragnar | Prólogo | Parte 2

VOLUME I - SOB A LUA DE RAGNAR

Prólogo




Quitandas, bazares, ambulantes, punguistas, malabaristas, vendedores de doces, de salgados, ferreiros mostrando suas armas, armaduras, ferramentas, comerciantes de amuletos, artefatos, todos falsos, talvez verdadeiros, talvez. Tavernas cheias, hospedarias sem vagas, vagas em estábulos, promoções em locais suspeitos, cheiro de peixe, de carne, fumaça, esgoto, suor, perfume élfico, de amor, de sangue, sujeira, de lama, a mesma que enche os pés, a poeira o ar. Placas, muitas placas, avisos por toda a parte, comida, diversão, jogos, mais barato, mais emocionante, traga seus filhos, ele já foi companheiro de Niele, veja um filhote de dragão, veja um homem tocado pela Tormenta, pague por 2, leve 3. Grandes tendas oferecendo desafios de esgrima e arco, luta e montaria. Pessoas, muitas pessoas, de tamanhos, cores e formas diferentes. Muitas. Juntas, pedindo licença, empurrando, pedindo desculpas, pedindo um tibar para comprar pão, pedindo informação, pedindo a carteira de alguém ou apenas pegando sem avisar, trovadores, bardos, artistas mostrando sua arte, música vazando de portas, janelas, tendas, línguas, muitas línguas, humanas, élficas, anãs, outras. Pessoas gritando, cochichando, conversando, abraçando, beijando, correndo, andando, pulando e agachando. Animais de carga, estimação, animais fantásticos, trobos, cães, gatos, ratos, familiares, companheiros animais, animais humanoides. Erudhir estava parado no meio de uma multidão, olhos vagos, o desconforto explícito para qualquer conhecido ou desconhecido. A Grande Feira de Malpetrim não era o lugar mais aprazível para um clérigo de Allihanna.
-Parou outra vez – comentou uma voz logo atrás de Tomoe.
-Isso vai levar o dia todo – lamentou o samurai.
O paladino assentiu com a cabeça.
-Um incapaz e um mudo, perfeito – se lamentou novamente o samurai.
Tomoe foi até o elfo, pôs a mão esquerda em suas costas e empurrou gentilmente.
-Vamos, Erudhir, vamos procurar uma taverna, comer e pegar um quarto. Lá vai ser mais calmo e talvez encontremos um estábulo ou quintal para dormires.
-Duvido – disse Eld.
-Isto aqui é bem agitado, muito bagunçado, as pessoas não têm educação alguma. Um samurai tendo de pedir passagem para os plebeus. Alguém menos paciente já teria sacado a katana.
-Hunf – retrucou o paladino.
-Meus amigos de vidas curtas, por favor, dói dizer, mas vamos procurar uma taverna – suplicou Erudhir, mãos nos ouvidos, tentando fazer o barulho parar.
Tomoe olhou por cima da multidão e avistou uma pequena placa alguns metros à frente.
-Não sei bem se é a melhor opção, o nome é péssimo, “Javali Perneta”. Um nome destes não pode ser um lugar adequado – disse, olhando para o paladino e o clérigo, com um pequeno incômodo por nenhum deles buscar acomodações adequadas para alguém de sua classe – Mas vai ter de servir – pensou alto, resignado.
O trio caminhou até a taverna, empurrou a porta e entrou, sendo recepcionado pelo odor de cerveja barata, suor e carne queimada. A construção possuía uma escada de madeira que levava ao andar inferior, onde se acumulavam mesas, cadeiras e pessoas. O grupo desceu até o andar das mesas, no alto janelas altas mostravam alguns pés apressadas da rua, do lado oposto do salão uma escada subia levando para quartos. Eld foi na frente, não para desbravar o lugar, mas por estar cansado e querer uma cadeira, sentou em uma mesa vaga e foi alcançado pelos outros dois.
-Hunf – disse, Eld.
-É – confirmou Tomoe.
-Que pesadelo, estou abaixo da terra em uma cidade de humanos e você dois se comunicam em uma língua própria – balbuciou Erudhir.
O lugar era barulhento e estava bastante cheio, próximo à escada dos quartos um bardo cantava sobre um guerreiro solitário e sua amada amaldiçoada por um lich, de como o vilão torturou a mulher para obrigar o homem a cumprir tarefas das mais difíceis, que no fim o lich era irmão gêmeo do guerreiro, aliado de Sszzaas e a mulher irmã desaparecida dos dois, que se arrependeram em diversos níveis. O público não parecia especialmente interessado na trama, o bardo, percebendo a apatia, inseria pequenas ofensas ao público, que passavam despercebidas dada a generalizada embriaguez e desinteresse. Apenas um paladino de Khalmyr recém-chegado ouvia, reparando nas ofensas ao público e balançando a cabeça em aprovação. Grupos bebiam desregradamente no meio do dia, para o horror de Tomoe, a cerveja rala derramada por toda parte tornava o aroma ambiente convidativo para uns, como o é o cais com seu cheiro de peixe. Dois homens rastejavam no chão, barba suja de comida, cabelos emaranhados com coisas misteriosas e sujeira pura e simples, um deles tinha um caneco na mão e bebia o que errava o chão. Uma mulher grande e forte, cabelos longos, cacheados e loiros, com uma loriga segmentada, batia em um homem vestido com uma camiseta rósea esvoaçante, lhe esfregando o rosto na parede enquanto apontava para sua amiga que, corada, olhava para outro lado.
-Benvindos à Javali Perneta, no que posso lhes ajudar? – uma voz questionou por trás do elfo.
Era uma garota humana, pele morena do sol, cabelos castanhos e cacheados ocultos por um lenço amarelo, não media mais de um metro e meio. Ela aguardou, sorriso aberto, o rosto cheio de sardas se iluminou quando viu o elfo.
-Ooooi! Eu acho elfos muito legais! Lamento muito pelos goblinóides terem matado todos vocês! Meu nome é Janice, vou servir vocês hoje. Nooooossa, um cara de Tamu-ra! Morreu muita gente lá também, ouvi dizer, alguém da sua família ficou vivo?
Janice ficou aguardando pelo pedido enquanto Tomoe e Erudhir tentavam entender se aquilo fora dito como insulto ou troça. Por alguns momentos os quatro apenas se olhavam, até que alguém, que não ligava para toda aquela situação, quebrou o silêncio.
-Água, carne e pão – disse Eld – o samurai paga – completou.
-Espero que esta cidade nos traga oportunidades, paladino, nunca fui tão pobre quanto hoje. Para mim carne, queijo, pão e... não tens nada de Tamu-ra, tens?
-Temos um empregado que diz que o avô era tamuriano, serve? – informou Janice.
-Só carne, pão, queijo e cerveja – sentenciou Tomoe.
-Tem queijo? Quero – acresceu Eld.
-Pão, queijo e cerveja, talvez algumas batatas, se for possível – pediu um aturdido Erudhir.
-Claro, senhor elfo, o senhor é muito bonito, espero que sua família ainda esteja viva. Vou trazer tudo.
-Meu irmão teve uma filha, ela tinha o seu tamanho – Erudhir pegou carinhosamente a mão da menina, cerrou os olhos e fez uma breve prece, sussurrando palavras élfica, fazendo um leve brilho quente e dourado passou de sua mão para a da menina.
Janice olhou para ele, olhos esbugalhados, algo entre o choque, alegria extrema e êxtase.
-MAGIA DE ELFO! QUE L E G A A A L! Isso é muito bom, seu elfo, o que você fez?? – perguntou a menina.
-É algo que fazia por minha sobrinha quando morávamos juntos, ajuda a ter forças para o dia – ele sorriu – Pode nos trazer a comida agora? Estamos com fome – e sorriu novamente.
Ela saiu distraída olhando para a mão e sorrindo, no caminho anotou o que os três pediram, para não esquecer, se voltou para trás e olhou para o elfo, que ainda sorria com os olhos. Com vergonha deu um pulinho e saiu correndo.
-Não sabia que tinhas família, Erudhir, não havias nos dito nada – disse Tomoe, enquanto afrouxava a armadura para sentar de forma mais confortável.
-É, não disse – confirmou o clérigo, ainda sorrindo.
Eld olhou os dois, percebendo que algo estava sendo oculto pelo elfo, mas ele realmente não ligava. Se fosse importante descobriria, se Erudhir quisesse falar, não precisaria perguntar. Concluiu que não valia a pena falar nada. Não falou.
-Gente, uma hora vocês terão de parar de me ignorar, até porque era pra cá que eu ia trazer vocês, meu amigo está ali do outro lado. É o de cabelos brancos com um manto e lendo um livro, dá até vergonha dele – disse Lili.

*****

Uma hora antes.
-Até que é fascinante esta cidade humana, incômoda, mas fascinante. Não é o jeito de Allihanna, todavia Valkaria tem seus encantos. Os humanos são interessantes em seus modos toscos e apressados.
Tomoe se colocou em frente ao elfo, mãos posicionadas para sacar a katana.
-Cuidado com o que diz, elfo! Nós tamurianos também somos humanos! Chame meus ancestrais de toscos novamente e terei de esquecer nossa amizade e duelaremos!
-Não foi minha intenção ofender, Tomoe, apenas uma observação cultural de alguém mais velho. Em Tamu-ra se respeita muito a idade, não? Saiba que há dois séculos eu já era mais velho do que você é hoje – apaziguou o elfo.
-É bem verdade que respeitamos os mais velhos, porém não abuse – e relaxou a postou de ataque.
-Que vergonha, um samurai abaixando a guarda no meio de uma luta – disse Eld.
Tomoe se voltou para o paladino, postura de luta refeita, olhos de um guerreiro. Eld, porém, não fazia a menor menção de pegar a espada, o escudo jazia intocado nas costas.
-Pfff, do outro lado, samurai – apontando para algo atrás de Tomoe.
Uma pequena confusão se anunciava. Pessoas aglomeradas gritavam, vozes misturadas falavam muitas coisas diferentes ao mesmo tempo. Todavia uma voz era ouvida com clareza.
-CÊ TÁ LOUCO, CARA? FALA NA MINHA CARA ISSO OUTRA VEZ, SEU BOSTA!
Tomoe foi em direção à comoção, seguido por Erudhir e Eld. Várias pessoas já se acotovelavam para assistir seja lá o que estivesse acontecendo, eles avançaram na multidão, o samurai na frente, sem pedir por favor uma única vez, apenas caminhando, puxando e empurrando toda aquela gente que teimava em não abrir caminho. Então ele viu.
-Erudhir, estão atacando uma criança! – avisou.

*****

Depois, na taverna.
Lili voltou para a mesa dos três com um homem alto, cabelos brancos, pele clara e orelhas pontudas.
-Bain, esse é o Erudhir, esse Tomoe e esse aqui o Eld, ele é mudo, acho.
-Olá, é um enorme prazer lhes conhecer, há muito tempo não via um tamuriano ou um elfo, me solidarizo com suas dores – cumprimentou Bain, dobrando levemente o corpo e levando a mão até o peito.
Tomoe se curvou levemente, mãos rentes ao corpo.
-Também é um prazer.
Erudhir se adiantou.
-Que Allihanna lhe abençoe, caro amigo – e abraçou o feiticeiro – Já vi muitos elfos, você parece, mas não é um. Aggelus?
-Sim, somos raros, impressionante que tenha percebido, impressionante mesmo, sou idêntico a um elfo – admirou-se Bain.
-Você não cheira como um – riu o elfo.
-Não gosto de magia arcana – comentou Eld, estendendo a mão para Bain, olhos sérios e plenos de justiça.
-Ah, ok, vou tentar lembrar disto. Ã, Lili, como você os conheceu? – quis saber Bain.
-Eles se meteram em uma briga, foi uma confusão. No fim tive que salvar os três – ela olhava e sorria para o aggelus.

*****

Antes, nas ruas de Malpetrim.
A turba cercava a garota, uma halfling, que era confrontada por um homem bastante irritado. Pessoas se acotovelavam para melhor assistir, na esperança de ver um pouco de sangue, alguns gritavam pela milícia, outros gritavam para deixar que eles se resolvessem sozinhos, seria mais divertido e educativo para as crianças que ali estavam.
-Falo quantas vezes precisar, bandidinha! Devolve o meu ouro! Ou vou levar você pra guarda, só que antes vou te quebrar toda! – ameaçou um homem, muitos músculos e litros de cerveja, pouca noção do que fazia no meio da rua.
A garota parecia chocada, uma leve contração no rosto demonstrou o asco que sentia ao ouvir a acusação. Ela revirou os olhos e respirou entre os dentes.
-Cara, cê não tem noção das coisas, não? Por que euzinha iria roubar? Olha pra mim, sou linda, cheirosa e maquiada, faz favor né! A minha bota de couro vale mais do que você inteiro! – argumentou a halfling.
-Esvazia os bolsos então! – gritou o homem.
-Eu nem tenho bolsos, olha! Essa minha calça é de grife! – e mostrou que não tinha onde colocar a tal bolsa.
Ela mostrava a calça, a falta de bolsos, a idiotice do homem que acusava sem provas. A população ali reunida começou a rir da situação, fazendo pouco do homem, alguns gritavam que ele tinha gasto tudo com bebida e não queria apanhar em casa. A pequena garota ria do sujeito, gargalhava ao ponto de balançar. Então a bolsa de ouro caiu de algum lugar abaixo dos seus cabelos.
-Opa – Lili olhou para o homem, que agora tinha a companhia de outros, indignados com a pequena ladra.

*****

Depois, entre amigos.
-Permita-me apenas corrigir algo que a pequena disse – pediu Tomoe.
-Meu anjo, não tem nada para corrigir, até porque né, já passou, quem vive de passado é museu e clérigo de Tanna-Toh, ou então bardo, mas só um dos três ganha dinheiro com isso. Vamos tocar a vida e esquecer tudo – pediu Lili, fazendo parecer que não pedia.
-Não posso deixar as coisas assim, aconteceu de forma diferente – tentou Tomoe novamente.
-Vocês brigaram, não? Tirei vocês de lá, não? Como que aconteceu de outro jeito, samurai? Tá dizendo que eu tô mentindo? Quer fazer parecer que não aconteceu o que falei? Cadê a honra dos tamurianos? Lin-wu tá vendo! – Lili olhava nos olhos de Tomoe.
-Eu, bem... – o samurai não sabia como continuar.
Tomoe não conseguia avançar na discussão, a pequena mulher tinha a língua rápida e feroz, fazia voltas, enganava, ele odiava aquilo, porém não conseguia encontrar qualquer brecha para se opor. Para piorar, era uma mulher, ele sequer podia propor um duelo. Ele fora derrotado e sabia.
-Ela roubou um cara e foi pega, cercaram, ameaçaram dar uma surra, e começaram a dar uma surra, até, ela começou a gritar. Salvamos a diaba e ela fugiu. Fomos atrás e agora ela diz que nos tirou da briga. Pfff – disse Eld.
-Odeio paladinos – suspirou Lili.

*****

Antes, fazendo amigos.
O homem avançou, deu três passos firmes em direção à halfling, enquanto andava tirava do cinto um porrete quase do tamanho da adversária. A arma de madeira desceu violenta para encontrar terra seca, a jovem, de forma ágil, desviou do golpe enquanto sacava sua adaga. Ela ainda estava no chão quando outro homem avançou da multidão e tentou um chute, acertando apenas o ar, a garota de calça de grife desviava graciosamente, fazendo parecer fácil. Ela sorriu, eram apenas bêbados mal treinados. Então veio a dor. Um chute nas costelas vindo de trás, um rapaz, não mais de quinze anos, emergiu da turba sem fazer barulho para atacar sorrateiramente. O golpe a fez perceber sua situação, estava cercada por pessoas hostis e bêbadas, algumas querendo ver sangue. Ela sentiu outro golpe pelas costas, cuspiu sangue no chão, o frio do metal ainda se fazia sentir. Nas mãos de um dos homens uma espada curta pingando sangue.
-PAREM JÁ, MALDITOS, COMO OUSAM ATACAR UMA DAMA, UMA INFANTE, DIANTE DE MEUS OLHOS! RECONHEÇAM SUA POSIÇÃO E SAIAM DAQUI – vociferou Tomoe, abismado com a falta de modos, com a incapacidade daqueles homens e mulheres de se colocar em seu devido lugar.
Todos olharam para aquele estranho homem com olhos assassinos que gritava. Porém o que lhes verdadeiramente impressionava era a espada em suas mãos, que emanava uma leve chama, os mais próximos percebiam não ser uma ilusão, era quente. O metal parecia incandescente, o samurai, entretanto, não sentia qualquer dor, segurava o cabo de maneira firme e ameaçadora.
-Deixem a garota em paz ou tentem sua sorte comigo – ameaçou ele.
Lili não perdeu tempo, a vida sempre lhe mostrara que oportunidades foram feitas para serem aproveitadas. E ela aproveitou. Enquanto o homem fazia o discurso e ameaçava os outros, ela atacou. Com um salto rápido chegou até o sujeito do porrete e atacou com a adaga, lhe ferindo fundo o pé direito. O sangue jorrou, o fazendo soltar a arma e gritar. Como que libertos do transe os outros atacaram, Lili se esquivou do primeiro, do segundo, porém o terceiro estava em seu ponto cego e com uma espada curta, novamente. Ele era bom. O homem baixo investiu contra a halfling, ela não conseguiu desviar, pôde tão somente se preparar para o golpe que não veio. Ouviu apenas o som de metal contra metal. Um escudo surgiu ao seu lado, preso ao braço forte de um homem armadurado.
-Pffff – disse ele.
Tomoe investiu, espada em punho, pronto para matar o bastardo que atacara a criança com uma arma letal. Então parou. Sob seus pés pequenas plantas lhe atrapalhavam o movimento, o mesmo abaixo de todos em uma grande área ao seu redor.
-Ei, acho que já está bom, certo? – gritou Erudhir, além da multidão.
-Tomoe – chamou Eld.
-O que foi? – perguntou Tomoe, irritado com a briga interrompida.
-Ela fugiu – disse o paladino, dando de ombros – pode ficar e brigar, mas estou com fome. Vou embora.
-Também estou, vamos – aceitou – eles não valem a pena – disse olhando para os homens presos na magia da natureza, enquanto guardava sua espada na bainha e fazia o brilho do fogo sumir.
-Outra coisa, Tomoe, não é uma criança, é uma halfling. É tão básico que não quis falar antes. Vamos – acrescentou o paladino, nenhum sorriso de vitória no rosto, apenas o reflexo da justiça.

*****

Depois da confusão, antes da taverna.
-Sabem, me sinto menos amoroso para com Malpetrim - disse Erudhir.
-Vai piorar – acalentou Eld.







Ilustração de Amanda Mattos Della Lucia.