VOLUME I - SOB A LUA DE RAGNAR
Capítulo 1: Cidade de Heróis
Elfos eram, até poucos anos atrás,
grandes entusiastas das artes, referência, suas cidades eram as mais belas,
seus poetas os mais eloquentes, a música era sempre mágica, com tons
arcanos e divinos. Lennorien fora o ápice da cultura élfica, mesmo membros da raça se
admirava com suas belezas, sempre que a avistavam. Hoje não há muitos homens ou mulheres que tragam na
lembrança as imagens, sons e cheiros daquela maravilha dentre as maravilhas
produzidas pelos filhos de Glórienn. Erudhir Stalkingwolf era um deles. Após a
queda da nação élfica ele rejeitou a deusa de seu povo e passou a adorar
Allihanna, uma mãe calorosa, forte e presente. A deusa da natureza retribuiu o
amor do elfo e lhe garantiu poderes, a habilidade de curar o mundo, interagir
com a vida ao seu redor, de aquecer o próprio coração e seguir vivendo,
deixando para trás tudo o que não mais vivia e que lhe causava um sentimento
novo, ao menos para um elfo: saudade. Os elfos sempre lidaram de forma racional
e equilibrada com a perda, entendiam que a morte vinha quando cessava a beleza
da existência, desta existência. Seus amados embelezariam o mundo de Glórienn,
a mãe de todos. Erudhir já não pensava assim. Então, a saudade.
Agora, todavia, o clérigo de
Allihanna batia palmas e no ritmo da melodia de um bardo, festejando os
resultados financeiros dos jogos dos quais ele e Tomoe participaram. Nenhum dos
dois ganhou nada. Lili ganhou. Lucro suficiente para pagar a taverna, o pouso
para a noite, a comida, estava ótimo. Tomoe parecia aliviado pela primeira vez
desde a chegada a Malpetrim, fácil perceber que não estava acostumado a viver
com pouco ou nenhum dinheiro, ao lado do elfo batia com a palma da mão direita na
própria coxa, acompanhando o bardo, sorriso no rosto limpo e marcado pelo sol
da viagem. No meio da turba embebida em cerveja barata e vinho de procedência
duvidosa, Lili. A halfling aproveitava para
aumentar o lucro do dia, aliviando descuidados do peso do ouro e da prata. Na mesma posição durante a
última hora e meia, sentado em uma mesa isolada próxima da entrada, olhos
atentos ao crime, olhos enganados por Lili e ao menos outros três ladinos que trabalhavam
ali naquela noite, Eld observava o ambiente. Bain, em uma cadeira no andar
superior observava com curiosidade, bebendo chá, sendo alvo de chacotas de
jovens incautos e pouco inteligentes. O feiticeiro levantou e seguiu para o
quarto, onde pretendia terminar a leitura. A ida ao quarto foi, entretanto, interrompida pela
visão de duas pessoas abordando o samurai. Um homem de meia idade, cabelos castanhos circundando uma lustrosa careca no alto da cabeça e bigode vasto, barriga proeminente, costeletas até onde se
poderia ir uma costeleta, camisa de algodão de qualidade, bem cuidada, mas
gasta, calças de couro mais apertadas do que a prudência sugeriria, botas de
viagem. Ao seu lado uma criança de aproximadamente dez anos, pele queimada do
sol, magricela, cabelos castanhos claros emaranhados e sujos, nariz arredondado,
sujo e ranhento, uma criança feliz, normal e carregando uma espada de madeira.
Bain desceu até onde estavam o tamuriano e o clérigo, queria ouvir.
-Boa noite, amigo, meu nome é Miguel,
este é meu filho, Pedro. Gostaríamos de conversar sobre negócios com os
senhores, é uma boa hora? – indagou o homem, a criança ficando quieta de forma
absolutamente normal e suspeita, como toda criança.
Tomoe olhava os homens, fazia força
para lágrimas de alegria não verterem e rolarem rosto abaixo.
-Oh, boa noite! Boa noite, nobre
senhor! Não há qualquer impedimento, por favor, senta-te à mesa conosco! –
conseguiu dizer Tomoe, levantando e apontando uma cadeira vaga ao homem.
Atento, Eld levantou e caminhou até a
mesa onde a conversa se iniciava. Chegou junto com Bain, que puxava uma
cadeira. O feiticeiro, ao ver o paladino, o cumprimentou. Eld agradeceu e
sentou-se. Bain olhou para ele, incrédulo. Puxou outra cadeira.
-Vejo que todos estão aqui, que bom –
disse o senhor.
-Agora estamos – uma voz soou ao lado
do homem.
Miguel olhou para o lado e viu uma
halfling usando botas de couro, longos cabelos negros e uma generosa bolsa que
parecia conter dinheiro.
-Estamos todos aqui agora, senhor,
qual o assunto? – perguntou Erudhir, curioso com o surgimento dos companheiros.
-Sim, sim, então estavam todos juntos
nos jogos, são uma equipe? Não havia notado alguns de vocês, que bom, que bom,
são mais completos do que imaginei – Miguel olhava para a halfling enquanto
falava, ainda intrigado com seu papel no grupo – Bom, o assunto que me traz
aqui diz respeito a todos vocês. Gostaria de contratar o grupo para uma
escolta.
-Quais os termos da pro... – começou
Lili.
-SIM – encerrou Tomoe.
-Perdão? – pai e filho, um pouco
assustados pelo grito repentino, observavam, olhos arregalados, o samurai.
-Perdão. Sim, aceitamos a honra de
proteger vosso grupo até o local a ser combinado – Tomoe sentenciou.
-Tomoe, veja bem – começou,
novamente, Lili.
-Já está decido.
-Como é que... – Lili tentou outra
vez.
-Quando começamos? - Tomoe perguntou
para Miguel.
-UHHHH, OMI!!! - explodiu Lili - Cê
tá é louco de falar assim comigo! Me interrompe outra vez pra ver se não
arranco essa tua cabeça! Cala essa boca, deixa de omice e ouve a especialista
em contratos!
-Lili! - interviu Bain.
-Quié, hein? - retrucou Lili, o
feiticeiro só observava.
-Mandaste-me cala... - começou Tomoe.
-XIU, OMI! Não me faz pegar a adaga!
Miguel e o menino olhavam, um tanto
assustados, a pequena mulher silenciar o samurai, que ainda protestava, mas
parecia um pouco aturdido e confuso, talvez até intimidado.
-Senhor, Miguel – sorriu Lili – O
samurai faz parte dos músculos do grupo, eu sou o cérebro. Todo e qualquer
acerto passa por mim, ele no máximo opina. Certo, queridos? – ela olhava para o
restante do grupo, todos meneavam as cabeças entre surpresos e assustados –
Então, qual é a missão exatamente? E que rapazinho esperto e amável é este, seu
filho?
Pai e filho se entreolharam, que
menina simpática. Miguel ficou satisfeito de ver uma garota com tino comercial
tão apurado, então começou as explicações.
-Claro, vamos aos detalhes. Primeiro,
não somos um grupo grande, apenas eu e este rapaz aqui, tínhamos uma escolta
até ontem, mas nos abandonaram por um pagamento maior. A proteção seria para
eu, meu filho, minha carroça e meus dois trobos. E o trajeto é daqui até
Bek’ground, uma pequena cidade em Deheon, próxima da fronteira com Bielefeld.
Sabe, normalmente não venderíamos nossas coisas tão longe, mas o menino queria
muito ver a Feira.
-Proteção para duas pessoas, certo –
Lili calculava.
Tomoe a honra ferida, observava os
dois. Aquela pequena mulher bonita e atrevida, como ousava. Ele encerraria a
disputa. Pensou em um valor alto, que possibilitaria uma discussão, uma
negociação. Lembrou-se da empolgação da halfling com a aposta, o dinheiro fora
de Tamu-ra e Ni-Tamu-ra fazia menos sentido.
-Trinta moedas de ouro! – disse
Tomoe.
-Fechado! – se adiantou Miguel.
Lili era puro ódio, ressentimento e
instinto assassino.
*****
A noite já ia alta, os sons da mata
povoavam o ar ao redor, árvores centenárias, lares de pássaros e roedores,
todos observavam a figura silenciosa, abaixo Gajan caminhava. Ia
pela trilha apagada, tocha na mão esquerda, o cheiro de óleo incomodava,
avançava devagar, tentando não chamar muita atenção, o que era difícil, o solo
era esburacado, seus sapatos feitos para a cidade tornavam a travessia
sofrível. Ele não ligava para a dor. Sua mente estava agitada, aquele era um
passo decisivo para os planos do Mestre, não iria cometer erros, tudo seria
perfeito. Por mais trinta minutos caminhou, fez voltas, chegou então a uma
pequena clareira, uma fogueira queimava, sobre ela nacos de carne ainda úmidos de sangue, junto do fogo um lobo rosnou para o intruso. Das sombras
emergiu uma criatura pequena, pouco menos de um metro, traços reptilianos,
diria um observador desatento, dracônicos um mais informado.
-Olá, seinhor, nois tar pronto, quando ser? – a criatura falava com uma voz fina, parecia uma criança.
-Prontos desde antis de antis de
antis de ontem, seinhor bom – outra criatura saiu da escuridão, o rosto marcado
por agressões pretéritas, uma cicatriz tomando o lugar do olho direito.
-Sim, estamos prontos, a criança deve
ser capturada amanhã, tudo já foi arranjado. Ele costuma se aproximar da orla
da floresta, toda manhã é assim – o cheiro, aparência e existência das
criaturas e enojava, teve de controlar o estômago.
-Claro, claro, seinhor da cidade, nós
acha ele, prendi, arranha um poco pra educá direito e tenta deixá o lobo
longe, ele gosta de filhoti humano hihihi – o maior deles riu de um jeito
desagradável.
-Tentar não, deixem o lobo longe
dele! Qualquer dano grave e vocês não estarão aqui para a próxima refeição! –
Gajan olhou cada um do bando, que ele sequer sabia quantos eram, nos olhos, ao
menos os que estavam visíveis – Amanhã, na orla, o menino. Deixem o pai vivo,
preciso dele vivo e não muito machucado, batam só o suficiente, nada de
arrancar pedaços, não quero ele morto por perder sangue!
-Qui chato, qui ruim assim, o seinhor
da cidade e da bota não deixa fazer nada – uma voz da escuridão reclamou.
-Dou ouro. Façam como falei e terão
ouro. E carne seca. E – ele respirou fundo – carcaça de boi fresquinha.
Os kobolds vibraram, uma carcaça
inteira, sem miséria, quase cheia de carne, nada de coelhos, de esquilos, dias
novos, uma carcaça quase nova.
Gajan deixou as pequenas criaturas
comemorando, tinha alguns preparativos por fazer e a caminhada era longa.
*****
Tomoe tinha um olhar satisfeito.
Miguel e Pedro já dormiam, Erudhir caminhava na rua, procurando uma boa árvore
para encostar e passar a noite, Bain após ver a cara de Lili foi para seu
quarto e trancou a porta, Eld resolvera ir dormir, pois a discussão que se
seguiria não lhe interessava, apenas a justiça. No quarto, Tomoe observava Lili, que o
acompanhara sem convite, entrar, fechar a porta e então o olhar com uma cara
irritada. Os dois se encaravam há quase cinco minutos.
-Cara, tu só pode ser burro – Lili
abriu a conversa.
-Veja como fala, pequena! Sou um
samurai! – Tomoe não entendia a irritação da halfling, tão pouco a dificuldade
em seguir os protocolos sociais.
-Velho, trinta moedas? Ele pagaria o
dobro, talvez o triplo! A gente vai atravessar a porra do Reinado! Eu devia dar com a mão nessa
tua cara! – Lili tentara aplicar a bofetada, de fato, logo após Tomoe fechar o acordo, mas ele
levantara rápido demais.
-Menina, olhe...
-QUEM É MENINA AQUI? Eu sou mais
velha que você, moleque, me respeita! Agora cê vai ouvir! Senta ai e fica quieto!
– a halflling urrava, Tomoe sentou, intimidado, querendo diminuir a comoção e,
também, um pouco curioso, estranhamente, de forma positiva – É o seguinte, a
gente é um grupo, entende? Uma droga de grupo! Quando você foi lá apanhar do
elfo, eu joguei pedra nele? Eu botei graxa na espada dele? Não! Devia? Devia!
Mas não fiz nada disso, porque o guerreiro é você, cara! Agora, eu sou a
negociadora, quando é pra conversar você chama o paladino? Não. Você conversa?
Não! Sabe por qual razão? Porque ele não fala e você fala mal. Eu falo bem,
você fala mal! Você é bom em bater nos outros, apesar de ter que melhorar, eu
sou boa em conversar, não ser vista e em outras coisas. Pra isso, você me
chama, pra bater nos outros, chamo você. Estamos acertados?
-Hm, ã, sim – Tomoe não conseguia
argumentar, ela era boa.
-Então boa noite – e saiu batendo a
porta.
Elfos eram, até poucos anos atrás,
grandes entusiastas das artes, referência, suas cidades eram as mais belas,
seus poetas os mais eloquentes, a música era sempre mágica, com tons
arcanos e divinos. Lennorien fora o ápice da cultura élfica, mesmo membros da raça se
admirava com suas belezas, sempre que a avistavam. Hoje não há muitos homens ou mulheres que tragam na
lembrança as imagens, sons e cheiros daquela maravilha dentre as maravilhas
produzidas pelos filhos de Glórienn. Erudhir Stalkingwolf era um deles. Após a
queda da nação élfica ele rejeitou a deusa de seu povo e passou a adorar
Allihanna, uma mãe calorosa, forte e presente. A deusa da natureza retribuiu o
amor do elfo e lhe garantiu poderes, a habilidade de curar o mundo, interagir
com a vida ao seu redor, de aquecer o próprio coração e seguir vivendo,
deixando para trás tudo o que não mais vivia e que lhe causava um sentimento
novo, ao menos para um elfo: saudade. Os elfos sempre lidaram de forma racional
e equilibrada com a perda, entendiam que a morte vinha quando cessava a beleza
da existência, desta existência. Seus amados embelezariam o mundo de Glórienn,
a mãe de todos. Erudhir já não pensava assim. Então, a saudade.
Agora, todavia, o clérigo de
Allihanna batia palmas e no ritmo da melodia de um bardo, festejando os
resultados financeiros dos jogos dos quais ele e Tomoe participaram. Nenhum dos
dois ganhou nada. Lili ganhou. Lucro suficiente para pagar a taverna, o pouso
para a noite, a comida, estava ótimo. Tomoe parecia aliviado pela primeira vez
desde a chegada a Malpetrim, fácil perceber que não estava acostumado a viver
com pouco ou nenhum dinheiro, ao lado do elfo batia com a palma da mão direita na
própria coxa, acompanhando o bardo, sorriso no rosto limpo e marcado pelo sol
da viagem. No meio da turba embebida em cerveja barata e vinho de procedência
duvidosa, Lili. A halfling aproveitava para
aumentar o lucro do dia, aliviando descuidados do peso do ouro e da prata. Na mesma posição durante a
última hora e meia, sentado em uma mesa isolada próxima da entrada, olhos
atentos ao crime, olhos enganados por Lili e ao menos outros três ladinos que trabalhavam
ali naquela noite, Eld observava o ambiente. Bain, em uma cadeira no andar
superior observava com curiosidade, bebendo chá, sendo alvo de chacotas de
jovens incautos e pouco inteligentes. O feiticeiro levantou e seguiu para o
quarto, onde pretendia terminar a leitura. A ida ao quarto foi, entretanto, interrompida pela
visão de duas pessoas abordando o samurai. Um homem de meia idade, cabelos castanhos circundando uma lustrosa careca no alto da cabeça e bigode vasto, barriga proeminente, costeletas até onde se
poderia ir uma costeleta, camisa de algodão de qualidade, bem cuidada, mas
gasta, calças de couro mais apertadas do que a prudência sugeriria, botas de
viagem. Ao seu lado uma criança de aproximadamente dez anos, pele queimada do
sol, magricela, cabelos castanhos claros emaranhados e sujos, nariz arredondado,
sujo e ranhento, uma criança feliz, normal e carregando uma espada de madeira.
Bain desceu até onde estavam o tamuriano e o clérigo, queria ouvir.
-Boa noite, amigo, meu nome é Miguel,
este é meu filho, Pedro. Gostaríamos de conversar sobre negócios com os
senhores, é uma boa hora? – indagou o homem, a criança ficando quieta de forma
absolutamente normal e suspeita, como toda criança.
Tomoe olhava os homens, fazia força
para lágrimas de alegria não verterem e rolarem rosto abaixo.
-Oh, boa noite! Boa noite, nobre
senhor! Não há qualquer impedimento, por favor, senta-te à mesa conosco! –
conseguiu dizer Tomoe, levantando e apontando uma cadeira vaga ao homem.
Atento, Eld levantou e caminhou até a
mesa onde a conversa se iniciava. Chegou junto com Bain, que puxava uma
cadeira. O feiticeiro, ao ver o paladino, o cumprimentou. Eld agradeceu e
sentou-se. Bain olhou para ele, incrédulo. Puxou outra cadeira.
-Vejo que todos estão aqui, que bom –
disse o senhor.
-Agora estamos – uma voz soou ao lado
do homem.
Miguel olhou para o lado e viu uma
halfling usando botas de couro, longos cabelos negros e uma generosa bolsa que
parecia conter dinheiro.
-Estamos todos aqui agora, senhor,
qual o assunto? – perguntou Erudhir, curioso com o surgimento dos companheiros.
-Sim, sim, então estavam todos juntos
nos jogos, são uma equipe? Não havia notado alguns de vocês, que bom, que bom,
são mais completos do que imaginei – Miguel olhava para a halfling enquanto
falava, ainda intrigado com seu papel no grupo – Bom, o assunto que me traz
aqui diz respeito a todos vocês. Gostaria de contratar o grupo para uma
escolta.
-Quais os termos da pro... – começou
Lili.
-SIM – encerrou Tomoe.
-Perdão? – pai e filho, um pouco
assustados pelo grito repentino, observavam, olhos arregalados, o samurai.
-Perdão. Sim, aceitamos a honra de
proteger vosso grupo até o local a ser combinado – Tomoe sentenciou.
-Tomoe, veja bem – começou,
novamente, Lili.
-Já está decido.
-Como é que... – Lili tentou outra
vez.
-Quando começamos? - Tomoe perguntou
para Miguel.
-UHHHH, OMI!!! - explodiu Lili - Cê
tá é louco de falar assim comigo! Me interrompe outra vez pra ver se não
arranco essa tua cabeça! Cala essa boca, deixa de omice e ouve a especialista
em contratos!
-Lili! - interviu Bain.
-Quié, hein? - retrucou Lili, o
feiticeiro só observava.
-Mandaste-me cala... - começou Tomoe.
-XIU, OMI! Não me faz pegar a adaga!
Miguel e o menino olhavam, um tanto
assustados, a pequena mulher silenciar o samurai, que ainda protestava, mas
parecia um pouco aturdido e confuso, talvez até intimidado.
-Senhor, Miguel – sorriu Lili – O
samurai faz parte dos músculos do grupo, eu sou o cérebro. Todo e qualquer
acerto passa por mim, ele no máximo opina. Certo, queridos? – ela olhava para o
restante do grupo, todos meneavam as cabeças entre surpresos e assustados –
Então, qual é a missão exatamente? E que rapazinho esperto e amável é este, seu
filho?
Pai e filho se entreolharam, que
menina simpática. Miguel ficou satisfeito de ver uma garota com tino comercial
tão apurado, então começou as explicações.
-Claro, vamos aos detalhes. Primeiro,
não somos um grupo grande, apenas eu e este rapaz aqui, tínhamos uma escolta
até ontem, mas nos abandonaram por um pagamento maior. A proteção seria para
eu, meu filho, minha carroça e meus dois trobos. E o trajeto é daqui até
Bek’ground, uma pequena cidade em Deheon, próxima da fronteira com Bielefeld.
Sabe, normalmente não venderíamos nossas coisas tão longe, mas o menino queria
muito ver a Feira.
-Proteção para duas pessoas, certo –
Lili calculava.
Tomoe a honra ferida, observava os
dois. Aquela pequena mulher bonita e atrevida, como ousava. Ele encerraria a
disputa. Pensou em um valor alto, que possibilitaria uma discussão, uma
negociação. Lembrou-se da empolgação da halfling com a aposta, o dinheiro fora
de Tamu-ra e Ni-Tamu-ra fazia menos sentido.
-Trinta moedas de ouro! – disse
Tomoe.
-Fechado! – se adiantou Miguel.
Lili era puro ódio, ressentimento e
instinto assassino.
*****
A noite já ia alta, os sons da mata
povoavam o ar ao redor, árvores centenárias, lares de pássaros e roedores,
todos observavam a figura silenciosa, abaixo Gajan caminhava. Ia
pela trilha apagada, tocha na mão esquerda, o cheiro de óleo incomodava,
avançava devagar, tentando não chamar muita atenção, o que era difícil, o solo
era esburacado, seus sapatos feitos para a cidade tornavam a travessia
sofrível. Ele não ligava para a dor. Sua mente estava agitada, aquele era um
passo decisivo para os planos do Mestre, não iria cometer erros, tudo seria
perfeito. Por mais trinta minutos caminhou, fez voltas, chegou então a uma
pequena clareira, uma fogueira queimava, sobre ela nacos de carne ainda úmidos de sangue, junto do fogo um lobo rosnou para o intruso. Das sombras
emergiu uma criatura pequena, pouco menos de um metro, traços reptilianos,
diria um observador desatento, dracônicos um mais informado.
-Olá, seinhor, nois tar pronto, quando ser? – a criatura falava com uma voz fina, parecia uma criança.
-Prontos desde antis de antis de
antis de ontem, seinhor bom – outra criatura saiu da escuridão, o rosto marcado
por agressões pretéritas, uma cicatriz tomando o lugar do olho direito.
-Sim, estamos prontos, a criança deve
ser capturada amanhã, tudo já foi arranjado. Ele costuma se aproximar da orla
da floresta, toda manhã é assim – o cheiro, aparência e existência das
criaturas e enojava, teve de controlar o estômago.
-Claro, claro, seinhor da cidade, nós
acha ele, prendi, arranha um poco pra educá direito e tenta deixá o lobo
longe, ele gosta de filhoti humano hihihi – o maior deles riu de um jeito
desagradável.
-Tentar não, deixem o lobo longe
dele! Qualquer dano grave e vocês não estarão aqui para a próxima refeição! –
Gajan olhou cada um do bando, que ele sequer sabia quantos eram, nos olhos, ao
menos os que estavam visíveis – Amanhã, na orla, o menino. Deixem o pai vivo,
preciso dele vivo e não muito machucado, batam só o suficiente, nada de
arrancar pedaços, não quero ele morto por perder sangue!
-Qui chato, qui ruim assim, o seinhor
da cidade e da bota não deixa fazer nada – uma voz da escuridão reclamou.
-Dou ouro. Façam como falei e terão
ouro. E carne seca. E – ele respirou fundo – carcaça de boi fresquinha.
Os kobolds vibraram, uma carcaça
inteira, sem miséria, quase cheia de carne, nada de coelhos, de esquilos, dias
novos, uma carcaça quase nova.
Gajan deixou as pequenas criaturas
comemorando, tinha alguns preparativos por fazer e a caminhada era longa.
*****
Tomoe tinha um olhar satisfeito.
Miguel e Pedro já dormiam, Erudhir caminhava na rua, procurando uma boa árvore
para encostar e passar a noite, Bain após ver a cara de Lili foi para seu
quarto e trancou a porta, Eld resolvera ir dormir, pois a discussão que se
seguiria não lhe interessava, apenas a justiça. No quarto, Tomoe observava Lili, que o
acompanhara sem convite, entrar, fechar a porta e então o olhar com uma cara
irritada. Os dois se encaravam há quase cinco minutos.
-Cara, tu só pode ser burro – Lili
abriu a conversa.
-Veja como fala, pequena! Sou um
samurai! – Tomoe não entendia a irritação da halfling, tão pouco a dificuldade
em seguir os protocolos sociais.
-Velho, trinta moedas? Ele pagaria o
dobro, talvez o triplo! A gente vai atravessar a porra do Reinado! Eu devia dar com a mão nessa
tua cara! – Lili tentara aplicar a bofetada, de fato, logo após Tomoe fechar o acordo, mas ele
levantara rápido demais.
-Menina, olhe...
-QUEM É MENINA AQUI? Eu sou mais
velha que você, moleque, me respeita! Agora cê vai ouvir! Senta ai e fica quieto!
– a halflling urrava, Tomoe sentou, intimidado, querendo diminuir a comoção e,
também, um pouco curioso, estranhamente, de forma positiva – É o seguinte, a
gente é um grupo, entende? Uma droga de grupo! Quando você foi lá apanhar do
elfo, eu joguei pedra nele? Eu botei graxa na espada dele? Não! Devia? Devia!
Mas não fiz nada disso, porque o guerreiro é você, cara! Agora, eu sou a
negociadora, quando é pra conversar você chama o paladino? Não. Você conversa?
Não! Sabe por qual razão? Porque ele não fala e você fala mal. Eu falo bem,
você fala mal! Você é bom em bater nos outros, apesar de ter que melhorar, eu
sou boa em conversar, não ser vista e em outras coisas. Pra isso, você me
chama, pra bater nos outros, chamo você. Estamos acertados?
-Hm, ã, sim – Tomoe não conseguia
argumentar, ela era boa.
-Então boa noite – e saiu batendo a
porta.